por Miguel Guimarães*
* Bastonário da Ordem dos Médicos
Se é verdade que a pandemia representou um grande desafio para os sistemas de saúde, também é justo reconhecer a grande e rápida transformação que exigiu do setor da educação. De aulas 100% presenciais, as escolas tiveram de se reinventar e transformaram as casas dos professores e dos alunos nas novas salas de aula. De plataformas internas a serviços de conferências remotas como o zoom, várias foram as soluções adotadas.
Mas… e há sempre um grande mas… rapidamente se percebeu que a solução digital, ainda que necessária, introduziria iniquidades e deixaria de fora muitos meninos e meninas que vivem noutras realidades de Portugal – e mesmo para os professores, por questões de idade ou de equipamentos disponíveis. A solução possível passou pelo regresso da telescola, mas reconhecendo-se sempre as limitações e o caráter complementar da televisão.
Mais: a dimensão social e relacional, importante ao longo da vida, mas especialmente trabalhada nos mais novos, ficou totalmente de fora da equação, com pais, professores e alunos a apelarem a que a tutela não se esqueça de como nada substituirá nunca o convívio cara a cara, o que não significa que voltemos tudo atrás e ignoremos alguns benefícios da digitalização.
A medicina à distância implica que médico e doente disponham de meios tecnológicos adequados, de plataformas que permitam trocar e registar informação clínica de forma segura e responsável, de uma definição clara do que se pode e do que não se pode alcançar. No mínimo, é preciso garantir que médico e doente se veem um ao outro, certificando-se de que quem está do lado de lá é mesmo quem devia estar.
E que relação tem a educação com a saúde? A saída das aulas das quatro paredes das escolas para outras soluções está para o setor da educação como a telemedicina, ou medicina à distância, está para o setor da saúde. Numa fase inicial foi absolutamente essencial adaptar e reorganizar os serviços de saúde, o que passou pelo cancelamento de muitas consultas, cirurgias e exames. Sempre que possível, o contacto do médico com o utente foi substituído por soluções à distância. Há quem venha a público dizer que assistimos a um crescimento exponencial da telemedicina.
Desenganemo-nos. O que vimos foi, muitas vezes, um crescimento exponencial de telefonemas e isso está longe de ser telemedicina. Se quisermos fazer um paralelismo com a culinária, poderíamos ilustrar defendendo que óleo não é azeite. Podemos dizer que o prato final é o mesmo com um ou com outro tempero, mas tanto um bom Chef como um apreciador de boa culinária vão distinguir o original do sucedâneo – já para não falar dos efeitos a médio e longo prazo destas duas gorduras na saúde. O resultado final de um bom prato dependerá sempre da qualidade individual de cada ingrediente, da quantidade e da forma de os combinar. A forma como juntamos um médico e um doente é também ela determinante.
Quando falo em exigência refiro-me a não abdicarmos de defender o que ninguém mais pode defender como nós: a ética, a deontologia, a qualidade da medicina e a humanização da relação médico-doente.
A medicina tem caminhado lado a lado com a ciência, com a inovação e com a tecnologia. Todas têm tido um papel fundamental nas formas de organização do nosso trabalho e nos resultados. Temos tido avanços civilizacionais impressionantes, com impacto na esperança média de vida e na qualidade de vida. Refiro-me à inovação no sentido lato, onde se inclui o conhecimento, as novas terapêuticas, como medicamentos ou dispositivos médicos, os meios complementares de diagnóstico e terapêutica e também as mudanças nos processos, algumas vezes mediados por tecnologia, como acontece na telesaúde e em específico na telemedicina.
Em Portugal a telemedicina tem exemplos que nos honram e que têm permitido ultrapassar alguns constrangimentos, nomeadamente na relação entre centros hospitalares mais centrais e zonas interiores. Na verdade, poderíamos ter ido mais longe com uma estratégia nacional plurianual e não dependente de mudanças políticas. Temos também tido uma posição importante e que nos orgulha na relação com países da CPLP, seja formando profissionais seja prestando alguns cuidados mediados pela telemedicina.
Mas, como bem sabemos, em medicina o que parece simples pode ser complexo e o complexo pode revelar-se simples. Quero com isto dizer que a telemedicina, embrulhada numa aparente facilidade introduzida pela mediação da tecnologia, não nos deve levar a deixar de ser exigentes e a defender que as tecnologias devem estar ao serviço da ciência e da medicina – e não o contrário. Um telefonema pode ser um contacto médico importante, mas não é telemedicina.
A medicina à distância implica que médico e doente disponham de meios tecnológicos adequados, de plataformas que permitam trocar e registar informação clínica de forma segura e responsável, de uma definição clara do que se pode e do que não se pode alcançar. No mínimo, é preciso garantir que médico e doente se veem um ao outro, certificando-se de que quem está do lado de lá é mesmo quem devia estar. Quantas vezes os nossos doentes nos dizem uma coisa, mas, na verdade, pela expressão corporal e pelo olhar intuímos outra? Quantas vezes é já à saída do consultório que rematam com uma frase essencial ao historial clínico?
A nossa base não é a tecnologia. A essência da medicina não está em nenhum produto. Está no doente, no médico e no seu Código Deontológico. Está no cumprimento intransigente desse mesmo Código, que nos lembra que “a telemedicina deve respeitar a relação médico-doente, mantendo a confiança e empatia mútua, a independência de opinião do médico, a autonomia do doente e a confidencialidade”.
Quando falo em exigência refiro-me a não abdicarmos de defender o que ninguém mais pode defender como nós: a ética, a deontologia, a qualidade da medicina e a humanização da relação médico-doente. Não negamos as vantagens da telemedicina, nomeadamente como forma de reduzir distâncias. É também, e cada vez mais, uma excelente resposta em parte do acompanhamento de doentes crónicos, nomeadamente através de aplicações digitais que permitem monitorizar determinados parâmetros.
Mas não podemos permitir e compactuar com situações em que se utiliza as tecnologias com meros objetivos de contenção orçamental ou para resolver situações de carência de profissionais que teriam solução se o Governo investisse numa política de contratação de recursos humanos. A título de exemplo, e sem qualquer relação com a atual pandemia, não é legítimo nem aceitável que grandes hospitais centrais dependam quase totalmente da telemedicina para áreas como a teleradiologia. Aquilo que agora parece um caminho natural pode a curto prazo desvirtuar o trabalho em equipa e a relação com o doente, colocar em risco os profissionais e os doentes.
A nossa base não é a tecnologia. A essência da medicina não está em nenhum produto. Está no doente, no médico e no seu Código Deontológico. Está no cumprimento intransigente desse mesmo Código, que nos lembra que “a telemedicina deve respeitar a relação médico-doente, mantendo a confiança e empatia mútua, a independência de opinião do médico, a autonomia do doente e a confidencialidade”. A ética e a deontologia podem acompanhar a sociedade, mas não são meras aplicações com atualizações acríticas e automáticas.