por Daniel Ferreira*
* MD, FESC, FACC – Cardiologista no Hospital da Luz Lisboa
Diretor Clínico do Hospital da Luz – Centro Clínico Digital

“It’s tough to make predictions, especially about the future.”
Yogi Berra

Apandemia, que ainda atravessamos, causada pelo vírus SARS-Cov2 está a impactar de modo mais ou menos violento os sistemas de saúde, mas também as economias de todos os países do mundo.

Se é verdade que este impacto trouxe feridas graves ao nível da saúde física e mental de muitos milhões de cidadãos por todo o planeta, também é verdade que a capacidade de adaptação dos seres humanos e das suas organizações internacionais, nacionais, regionais ou locais foi, a muitos níveis, verdadeiramente excecional.

A adoção do digital pelas sociedades acelerou com tal magnitude que, em meros 3 meses, se atingiram patamares que as melhores previsões dos tempos pré-pandemia, antecipavam apenas para daqui a muitos anos.

A título de exemplo talvez mais paradigmático desta adoção digital, o teletrabalho, até aqui adotado apenas por um número restrito de empresas mais visionárias da área tecnológica, tornou-se rapidamente no “novo normal”.

Também a telesaúde sofreu um tremendo “boost” a nível nacional e internacional. O cancelamento de consultas médicas, de cirurgias e de outros procedimentos de diagnóstico e terapêutica por um lado, e o medo dos cidadãos de recorrerem aos serviços médicos nos hospitais e centros de saúde, levou ao inevitável agravamento de muitas situações médicas crónicas e mesmo de situações agudas urgentes/emergentes “não-COVID”.

A necessidade sentida pelos profissionais e instituições de saúde de manter contacto regular com os seus doentes, levou à verdadeira explosão de sistemas de consultas remotas nas suas mais diferentes variantes (por via telefónica, videoconsulta, SMS/email, etc.) e de sistemas de telemonitorização dos doentes nos seus domicílios.

Várias foram as organizações prestadoras de cuidados de saúde (públicas, privadas, sociais) ou mesmo de outras áreas (por ex: seguradoras de saúde) que rapidamente implementaram estes sistemas, respondendo, deste modo, à necessidade criada de manter contacto com os seus doentes e de providenciar cuidados de saúde ainda que de modo remoto.

Mesmo as instituições mais visionárias, e que já vinham oferecendo este tipo de serviço aos seus doentes há alguns anos, viram-se na contingência de incrementar muito a sua capacidade de resposta, acelerando a formação dum número elevado de profissionais de saúde na prática da telemedicina, aumentando o número de especialidades envolvidas, aumentando o número de “videoconsultórios”, derivando para a telemedicina significativos recursos humanos e tecnológicos.

A necessidade sentida pelos profissionais e instituições de saúde de manter contacto regular com os seus doentes, levou à verdadeira explosão de sistemas de consultas remotas nas suas mais diferentes variantes (por via telefónica, videoconsulta, SMS/email, etc.) e de sistemas de telemonitorização dos doentes nos seus domicílios.

De modo que a excelente capacidade de adaptação, das nossas instituições e dos nossos profissionais de saúde, resultou numa também excelente resposta às necessidades dos seus doentes no período de maior impacto da pandemia. Estão, pois, todos (profissionais e instituições) de parabéns pelo enorme esforço desenvolvido em tão curto espaço de tempo.

No entanto….

Apesar de entusiastas desta área da telemedicina e de nos regozijarmos todos pelo incremento que ela sofreu nos últimos meses, temos de reconhecer que a necessidade de implementação, em tempo recorde, de muitos destes sistemas de consultas remotas, levou, em muitos casos, a algum “atropelo” de algumas regras de ouro da prática da telemedicina tal como a concebemos, e que deveriam fazer com que uma consulta remota fosse em tudo semelhante a uma consulta presencial.

Falo das garantias de segurança, de privacidade e de qualidade dos atos médicos praticados nestes sistemas.

Sobre este tema tive oportunidade de escrever recentemente um artigo para a revista Medicina Interna (publicado online, ver aqui)

E depois da crise pandémica?

Entrámos recentemente numa outra fase da crise pandémica, passando dum estado de emergência para um estado de calamidade, iniciando o “desconfinamento” da população e reiniciando a atividade económica de modo progressivo.

Esta é, pois, a altura certa para perspetivarmos qual poderá ser o futuro reservado para a telemedicina no futuro a curto/médio prazo.

Passada esta fase pandémica, será de esperar alguma (mais ou menos significativa) quebra no entusiasmo dos profissionais e das instituições pela prática da telessaúde (…). Apesar desta esperada quebra de entusiasmo, muitos foram os profissionais de saúde e os doentes que já experienciaram as grandes vantagens que advêm da prática de consultas remotas ou da telemonitorização, que ficaram “convertidos à causa” e que irão seguramente continuar a manter atividade na área da telemedicina.

Como cientistas que somos, devemos basear-nos nos factos científicos reais já comprovados para, a partir destes, podermos fundamentar as nossas previsões sobre o futuro.

O que já sabemos sobre a telemedicina/telesaúde:

  • É benéfica para intervenções e populações de doentes específicas:

São múltiplas as publicações, em revistas médicas de referência, que demonstram que a telesaúde revelou resultados iguais ou mesmo melhores do que os cuidados tradicionais em termos de satisfação dos intervenientes e em termos de ganhos nos indicadores de saúde.

  • A evidência deste benefício está concentrada em utilizações específicas:

Podemos também encontrar um grande volume de publicações suportando a utilização da telesaúde para:

– Monitorização domiciliária de doenças crónicas (ex: insuficiência cardíaca e DPOC)

– Seguimento e aconselhamento de doentes com doenças crónicas por consultas remotas

– Apoio psicológico/psicoterapia (ex: promoção de saúde comportamental)

  • A escassez de recursos humanos muito diferenciados cria a necessidade de alternativas remotas

A implementação de equipas de prestação de cuidados em ambiente de cuidados intensivos com centralização de peritos (médicos e de enfermagem) em hospitais virtuais que prestam apoio às equipas de UCIs de hospitais mais periféricos, levou já à demonstração de resultados muito positivos em termos de reduções de morbi-mortalidade e de dias de internamento nas UCIs (um bom exemplo são os resultados já obtidos pelo Mercy’s Virtual Hospital em Saint Lewis, USA).

  • O impacto é maior quando o tempo é mais precioso

Sistemas de apoio que permitem o envio à distância de elementos clínicos críticos (ex: dum ECG no enfarte agudo do miocárdio ou duma TC crânio-encefálica no caso dos AVCs) permitem a referenciação dos doentes para centros de referência sem perdas de tempos em centros menos diferenciados, com comprovados ganhos em termos de morbi-mortalidade.

Também do ponto de vista da credibilidade dos sistemas será essencial elaborar, para cada especialidade médica, os critérios de elegibilidade para as patologias que podem (e para as que não podem) ser seguidas de modo remoto, implementar programas de formação, criar condições logísticas para garantir a segurança, privacidade e qualidade do ato clínico, manter o programa de telemedicina suficientemente adaptável ao aparecimento de novas tecnologias e novos requisitos.

  • O contexto é relevante

Determinadas soluções de telemedicina podem ser mais importantes nalguns contextos do que noutros.

Sistemas de apoio remoto para doentes que trabalham/habitam em regiões remotas dos centros de saúde (ex: ilhas, plataformas petrolíferas, navios) podem ser mais úteis do que idênticos sistemas para doentes localizados a menores distâncias das instituições.

O contexto atual de pandemia pode levar a que sistemas menos impactantes noutras ocasiões se tornem fundamentais quando a deslocação às instituições de saúde não é possível ou comporta riscos acrescidos.

Com base nestas evidências, será importante que as instituições que criam sistemas baseados em telemedicina assegurem que esses sistemas, por um lado, cumprem os requisitos éticos e legais que os tornem inatacáveis perante as instituições reguladoras e supervisoras (ordens profissionais, entidades oficiais, etc.) e, por outro, são sustentáveis do ponto de vista institucional, justificando o investimento envolvido (em termos de recursos humanos e materiais) com resultados objetivos em termos de ganhos de saúde dos doentes a que se destinam.

Passada esta fase pandémica, será de esperar alguma (mais ou menos significativa) quebra no entusiasmo dos profissionais e das instituições pela prática da telesaúde, considerada por muitos como o “ovo de Colombo” durante a pandemia, para rapidamente voltar a ser encarada como uma atividade com interesse apenas para uns “carolas” com gosto pelas tecnologias.

Apesar desta esperada quebra de entusiasmo, muitos foram os profissionais de saúde e os doentes que já experienciaram as grandes vantagens que advêm da prática de consultas remotas ou da telemonitorização, que ficaram “convertidos à causa” e que irão seguramente continuar a manter atividade na área da telemedicina.

Com vista a comprovar o valor da telemedicina/telesaúde junto dos seus utilizadores e junto das entidades financiadoras/reguladoras, teremos de promover mais e melhor investigação nesta área (…): definição das áreas de intervenção, estudo de novas áreas de intervenção para a telesaúde (…), definição de outcomes clínicos claros (…), avaliações dos resultados económicos dos programas de telemedicina (…), divulgação na comunidade científica de experiências bem-sucedidas para que possam ser replicadas (…), avaliação de modelos de utilização da telemedicina como integrantes de programas de resposta a situações de calamidade (de que é exemplo a resposta a esta pandemia por COVID-19) (…).

Tanto mais que, uns e outros, são hoje testemunhas, em primeira mão, de que a telemedicina não só não prejudica (como antes reforça) a relação médico-doente, tal como nós (os tais “carolas”) vínhamos dizendo há já muitos anos.

Requisitos éticos e legais

Para se manterem ativos, e credíveis, os sistemas de teleconsulta deverão cumprir os requisitos legais já estipulados para a prática da telemedicina:

  • Cumprir os preceitos determinados pelo RGPD
  • Cumprir os requisitos enunciados nas normas da DGS
  • Efetuar o registo das instituições que praticam a telemedicina na Entidade Reguladora da Saúde (incluindo nomear um responsável médico pelo programa em cada instituição).

Também do ponto de vista da credibilidade dos sistemas será essencial:

  • Elaborar, para cada especialidade médica, os critérios de elegibilidade para as patologias que podem (e para as que não podem) ser seguidas de modo remoto
  • Implementar programas de formação em telemedicina para os profissionais de saúde envolvidos
  • Criar condições logísticas para garantir a segurança, privacidade e qualidade do ato clínico
  • Manter o programa de telemedicina suficientemente adaptável ao aparecimento de novas tecnologias e novos requisitos com vista a melhorar a qualidade dos atos praticados.

Investigação em telesaúde

Com vista a comprovar o valor da telemedicina/telesaúde junto dos seus utilizadores e junto das entidades financiadoras/reguladoras, teremos de promover mais e melhor investigação nesta área.

Esta investigação deveria visar, entre outras:

  • Definição das áreas de intervenção por telemedicina e sua comparação com os meios tradicionais de prestação de cuidados
  • Estudo de novas áreas de intervenção para a telesaúde, resultantes de novas necessidades e da disponibilização de novas tecnologias e monitorização
  • Definição de outcomes clínicos claros: quais os que são apropriados e quais o não são para avaliação da relação custo/eficácia das intervenções
  • Avaliações dos resultados económicos dos programas de telemedicina incluindo métodos rigorosos de medição e análise dos custos
  • Implementação de estudos multicêntricos (incluindo centros públicos, privados, outros) para aumentar a probabilidade de obtenção de resultados conclusivos
  • Divulgação na comunidade científica de experiências bem-sucedidas para que possam ser replicadas por outros
  • Avaliação de modelos de utilização da telemedicina como integrantes de programas de resposta a situações de calamidade (de que é exemplo a resposta a esta pandemia por COVID-19)
  • Criação de estudos piloto para expansão da telemedicina para áreas menos habituais da sua utilização (exemplos de lares, hospitais de retaguarda, unidades de cuidados continuados ou domiciliários)

O futuro pode, pois, ser muito risonho para a telemedicina nos tempos pós-pandemia. Tudo dependerá do modo como as instituições e profissionais de saúde e os seus dirigentes encararem esta valiosa ferramenta que, como todas as outras, se for mal utilizada poderá provocar danos nos seus utilizadores, mas, se pelo contrário for bem utilizada, poderá revelar-se como um dos grandes avanços na Medicina do século XXI.

Cá estaremos para ver e ajudar.