por Maria de Belém Roseira*
* Fundadora da Associação Portuguesa de Telemedicina
Ministra da Saúde do XIII Governo Constitucional

Envolvi-me com a telemedicina por me ter apercebido das suas potencialidades mal ela surgiu nos países nórdicos, quando o rigor dos invernos isolava populações inteiras do acesso aos cuidados de saúde.

Escrever umas palavras para a Associação Portuguesa de Telemedicina só faz sentido se forem interpretadas como uma homenagem ao seu fundador, Professor Agostinho Almeida Santos.

Recordo-o com saudade, pela muita estima que lhe dediquei e que foi crescendo à medida que nos conhecíamos melhor e nos envolvíamos em projectos de interesse comum que considerávamos serem de interesse para Portugal e para a Lusofonia.

Em termos pessoais, envolvi-me com a telemedicina por me ter apercebido das suas potencialidades mal ela surgiu nos países nórdicos, quando o rigor dos invernos isolava populações inteiras do acesso aos cuidados de saúde.

Vivia-se, então, o limiar de uma nova era em que as tecnologias de informação viriam revolucionar as nossas vidas, ainda de uma forma não entendida em todas as suas dimensões.

Mas alguns profissionais de saúde, abertos à inovação e à modernidade, rápido perceberam as suas potencialidades.

Os anátomo-patologistas foram dos primeiros a valorizar as potencialidades desta nova ferramenta até porque a escassez de recursos humanos nessa área que já então constituía uma enorme preocupação face ao progressivo aumento da incidência de doenças cuja abordagem necessitava impreterivelmente dessa competência, como é o caso do cancro, por exemplo.

Em países com condições climatéricas extremas ou muito duras, a distribuição desses especialistas pelo território era ainda mais difícil de forma que as novas tecnologias vinham prometer atenuar/resolver um problema de difícil solução.

Em Portugal, também estes anseios foram fazendo o seu caminho, à moda tradicional, ou seja: os visionários eram contrariados pelos velhos do Restelo e os visionários com poder para decidir, apesar dos velhos do Restelo, eram contrariados e neutralizados nas suas decisões ou planos de acção por quem lhes sucedia nas funções. Sempre com colaboradores à altura que arranjavam problemas onde a evolução do mundo digital vinha trazendo soluções.

(…) a enorme importância estratégica da língua portuguesa, não só na afirmação de uma identidade e de uma cultura cada vez mais necessária num mundo multipolar, mas também como instrumento de redução de desigualdades no acesso a conhecimentos numa área tão essencial para o desenvolvimento humano como é a da saúde.

Nada de novo, portanto!

Mas um nada de novo que explica o nosso escandaloso atraso, sobretudo em época em que tão necessário seria estarmos à frente ou, pelo menos, ao nível daquilo que já se faz por rotina em muitos países do mundo, até porque tínhamos cá dentro vários eco-sistemas que o possibilitavam.

Na verdade, apesar de algumas experiências bem sucedidas, designadamente no norte e centro do pais, que permitiam integrar cuidados de saúde, evitar e poupar deslocações desnecessárias e, muitas vezes, penosas de doentes, aproximar os cuidados de saúde das populações e suprir insuficiências ou permitir adequado aproveitamento de recursos humanos altamente especializados, reconfigurar modelos de prestação de cuidados, maior aposta na promoção e protecção da saúde, prevenção da doença, mais articulação e proximidade entre profissionais , etc., etc. a telemedicina foi-se arrastando penosamente entre nós .

Mercê da teimosia e abnegação de Agostinho Almeida Santos, de Eduardo Castela, de José Nunes de Abreu, constituiu-se a Associação Portuguesa de Telemedicina que tentou – e conseguiu – manter vivos alguns projectos que, para além dos benefícios atrás apontados, tinham como visão próxima os benefícios acima apontados e como visão última o reforço da lusofonia na Saúde.

Aliás, Agostinho Almeida Santos conseguiu montar e manter com sucesso o internato de ginecologia / obstetrícia com componentes formativas através de telemedicina.

Para quem gosta de assumir a sua superioridade social e a sua sobranceria através da exibição do domínio de línguas estrangeiras bem faria, sem esquecer essas suas faculdades, se percebesse a enorme importância estratégica da língua portuguesa, não só na afirmação de uma identidade e de uma cultura cada vez mais necessária num mundo multipolar, mas também como instrumento de redução de desigualdades no acesso a conhecimentos numa área tão essencial para o desenvolvimento humano como é a da saúde. Para além disso é instrumento económico poderoso e todos dependemos de uma economia forte, criadora de emprego e de riqueza justamente distribuída. E se alguma coisa a pandemia de Covid-19 ensinou a quem andasse distraído é que sem saúde não há economia, mas sem economia também não há saúde!

O eco-sistema existente em Coimbra e na Região Centro de fortes competências no domínio digital, desde a Universidade ao tecido empresarial (a Critical Software a título de exemplo) bem como a PT Inovação, hoje Altice Inovação (Centro da Altice de irradiação para todo o mundo da inovação a nível de tecnologias de comunicação), com sede em Aveiro, permitiram continuar a manter a chama viva embora sem o fulgor e a intensidade que poderia e deveria ter.

Constitui uma dor que o país se deixe atrasar só porque quem transitoriamente lidera tem como objectivo secar toda a inovação que não foi da sua iniciativa.

E como hoje, perante a ameaça e o impacto do Covid -19, estaríamos bem melhor com acessibilidade a teleconsultas que evitam o risco de contaminação e permitem o devido acompanhamento e orientação de doentes! Quantas mortes poderíamos ter evitado, quanto agravamento de doenças tratáveis teria sido possível se não nos tivéssemos deixado atrasar naquilo que poderíamos e deveríamos ter feito!

E se alguma coisa a pandemia de Covid-19 ensinou a quem andasse distraído é que sem saúde não há economia, mas sem economia também não há saúde!

Mas podem retorquir: porque não avançou a sociedade civil? A resposta é simples: porque sozinha não pode fazê-lo, pois não tem funções governativas, nem executivas, nem legislativas. O sector privado, esse avançou. O público – e queremos um SNS universal, humano, competente, sensível e eficaz – não pode fazê-lo, pois isso é competência do Governo e tudo o que tem que ver com Direitos, Liberdades e Garantias é competência da Assembleia da República. Informação de saúde e dados de saúde são sensíveis, podem pôr em causa ou perturbar o exercício de outros direitos fundamentais.

Resta-me prestar tributo aos visionários, aos que não se conformam com um país atrasado, e aos que continuam a ousar, mesmo que isso possa ser arriscado ou até perigoso.

E, para saudar todos esses, termino como comecei, invocando Agostinho Almeida Santos e o legado que nos deixou! Saibamos desenvolvê-lo e, assim, honrar a sua memória.