por Armando Duarte*
* Engenheiro Informático responsável pelo suporte à telemedicina do CHUC – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

Há mais de vinte anos que tenho o prazer de assistir às palestras do Sr. Dr. Eduardo Castela, que um dia sonhou colocar a tecnologia e as comunicações para encurtar distâncias e permitir assim partilhar conhecimentos especializados para locais onde estes eram menos acessíveis. Assisti ao seu orgulho ao realizar ecografias à distância, desde Trás-os-Montes a Cabo Verde. E, no ano seguinte, lá voltava eu a ter nova ocasião de escutar o mesmo orador, cada vez menos falando de tecnologia, mas mais de motivação, de vontade, de organização, para que a tecnologia pudesse permitir a acessibilidade a cuidados diferenciados, pois no fundo era tão simplesmente esse o objetivo final: tornar o conhecimento mais especializado acessível a todos, independentemente do seu local de residência ou condição económica.

Eram para mim óbvias as vantagens demonstradas, e também evidente que essa “luta” deveria continuar, pois apesar da tecnologia ter evoluído exponencialmente, de ter sido também elaborado o enquadramento legal, havia ainda e sempre que continuar a motivar o alargamento da utilização das ferramentas de telemedicina, quando ainda nos continuamos a aperceber que há sempre muito para fazer, muita gente para motivar, e muita organização a mudar.

No entanto, devo confessar, mesmo assim e enquanto Director do Serviço de Informática do na altura Centro Hospitalar de Coimbra, do qual fazia parte o Hospital Pediátrico, nunca prestei apoio especial à equipa do Serviço de Cardiologia Pediátrica no que a este assunto diz respeito. Havia sim o apoio do Sr. Luís Carreira, excelente técnico do meu serviço, que de uma forma até quase clandestina, prestou toda a colaboração à equipa da Telemedicina desde a primeira hora.

Entretanto, em 2019 fiquei com algumas responsabilidades no CHUC no que concerne à ferramenta de Telemedicina aí instalada, bem como a criação de novos utilizadores individuais e institucionais, enfim nada de especial. Contudo, para perceber melhor a ferramenta e ajudar novos utilizadores, entendi que deveria assistir a uma teleconsulta, no caso, de Cardiologia Pediátrica no Hospital Pediátrico de Coimbra.

Eu já sabia, já todos sabemos das vantagens económicas e sociais, das implementação e disseminação de soluções de telemedicina. Eu já sabia, mas nesse dia eu senti. E foi muito bom!

Pedi autorização para tal, e fui muito bem recebido pela médica que estava na altura a fazer consultas para a Unidade Local de Saúde da Guarda. Durante cerca de uma hora, fui assistindo às perguntas e respostas dos interlocutores, ao chorar e acalmar dos bebés, e, de repente dei por mim a pensar… pois, eu já sabia disto tudo, já tudo me tinha sido explicado inúmeras vezes, não era novidade nenhuma para mim que, ao fim daquela hora, cinco bebés tivessem feito a sua ecografia cardíaca, devidamente diagnosticada, sem terem que vir a Coimbra, poupando assim no total talvez 2000km de deslocações, alguns dias de trabalho perdidos pelos pais, ou pior… se calhar alguns não teriam realizado esse exame que o seu médico entendeu necessário. Numa única hora. Já sabia disto tudo, mas… ou pelas recordações do meu filho quando bebé que aqueles sons me trouxeram, ou pelas saudades da minha avó que chorava a recitar a Nau Catrineta e assim me terá deixado alguns genes de desentupimento lacrimal frequente, ou por alguma senilidade precoce, o facto é que… isso mesmo, desentupi um bocadinho.

Eu já sabia, já todos sabemos das vantagens económicas e sociais, das implementação e disseminação de soluções de telemedicina. Eu já sabia, mas nesse dia eu senti. E foi muito bom!

Entretanto e de repente o paradigma mudou. Aquilo que era a teleconsulta e se baseava numa consulta à distância entre profissionais, com ou sem a presença do doente, agora pela chegada da pandemia, passou a ser diretamente entre médico e doente. Já não é apenas a partilha de conhecimento especializado entre profissionais, mas sim a recuperação das consultas em atraso em condições de segurança.

Independentemente da solução tecnológica a adoptar, este tipo de teleconsultas estará sempre reservado à intersecção de dois conjuntos: as consultas passíveis de fazer à distância, sem uma observação presencial do doente, e os utentes com recursos e literacia tecnológica para tal. Ora talvez destas restrições conjugadas sobre um número pouco expressivo de teleconsultas a realizar directamente com o utente. Mas se não podemos alterar o primeiro conjunto, que terá até tendência para reduzir assim que a pandemia estabilizar, podemos no entanto trabalhar para que se alargue o segundo, isto é, criar condições para que mais e mais doentes possam recorrer a estas ferramentas.

A nova plataforma disponibilizada pela SMPS, a RSE Live, vem permitir isso mesmo, mas implica os necessários cuidados de confidencialidade, mesmo adoptando os mecanismos simples de autenticação, como sejam a Chave Móvel Digital, uma vez que requer o registo na área do Cidadão do Portal do SNS. Por simples e seguro que seja este requisito, não estará certamente ao alcance de muitos dos utentes do SNS, porventura os mais consumidores de cuidados.

Havendo já consagrada a figura do Promotor Interno de Telemedicina, criada pelo Despacho 8445/2014, se calhar agora seria interessante criar a figura de Promotor Externo, enquadrada na Rede de Promoção da Telessaúde.

Talvez seja um sonho, mas com organização e comunicação, seria possível construir uma rede de apoio a estes utentes, no que concerne ao seu registo seguro nas plataformas, disponibilização de meios informáticos e início das teleconsultas, contando com as instituições de proximidade, nomeadamente, lares, centros de dia, casas de repouso, Juntas de Freguesia, os próprios Centros de Saúde, de forma a que cada um pudesse ter um gabinete ou até unidades móveis, onde, com o apoio de alguém, e com um simples computador, pudesse ser realizada a tal teleconsulta, com as suficientes condições técnicas, e necessária privacidade. Naturalmente com o apoio inicial, se necessário, dos Hospitais e ARS’s, mas sobretudo com um pouco de organização e uma boa dose de vontade. Talvez a COVID-19 deixasse assim também nesta matéria sementes positivas de mudança, e nos fizesse transformar dificuldades em oportunidades exploradas para além da pandemia, aumentando assim a acessibilidade aos cuidados e reduzindo custos para os doentes e para o SNS. Quando se discute o tema das Taxas Moderadoras, quase sempre se deixa de fora o verdadeiro moderador financeiro para os doentes que são as deslocações e o tempo despendido para realizar uma consulta.

Havendo já consagrada a figura do Promotor Interno de Telemedicina, criada pelo Despacho 8445/2014, se calhar agora seria interessante criar a figura de Promotor Externo, enquadrada na Rede de Promoção da Telessaúde.

Desta vez, e ao contrário da experiência que relatei atrás, não sei se vai ser possível, mas sinto convictamente que se quisermos vai acontecer.