por Constantino Sakellarides*
* Professor Catedrático jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública

Transformar

As grandes crises são também oportunidades de mudança. Especialmente aquelas em que não há culpados óbvios. Somos todos igualmente inocentes e culpados, parte de um mundo monótono, virado para o imediato, insensível aos desafios do futuro. Habituamo-nos a perceber como normal a devassa cega do meio ambiente e das suas consequências na relação entre as espécies. Assistimos passivos a extraordinárias transformações climáticas. E à violência gratuita. Parece-nos natural frequentarmos escolas onde nos ensinam a todos do mesmo modo, irmos todos trabalhar, em longos cortejos, à mesma hora, em organizações que funcionam da mesma maneira, frequentar serviços à mesma hora, com respostas similares para problemas diferentes.

Uma das vantagens desta ausência de culpados específicos – o vírus não conta – é tornar mais fácil as convergências efetivas necessárias para transformar no sentido de fazer melhor aquilo que precisamos.

A crise proporciona um “curso natural e intensivo” sobre o papel da telemedicina

O confinamento e o que se lhe seguiu, tornou mais claro para todos aquilo que a telemedicina pode, de facto, oferecer aos cuidados de saúde. A “crise” parece estar a atuar como “acelerador” de um processo histórico, iniciado, no nosso país, nos anos 90 do século passado e incluindo progressivamente a contribuição de várias especialidades médicas, particularmente a cardiologia, a dermatologia, a psiquiatria e a neurologia. Passou de ser um recurso tecnológico para superar as dificuldades de acesso a especialidades médicas a partir de localizações do território nacional onde aquelas não existiam, para se constituir num meio comunicacional entre pessoas que tiram vantagens em criar uma relação de trabalho não coincidindo no mesmo espaço físico. Deixou de ser um mal menor para se tornar num bem maior.

As implicações desta transformação são extraordinárias. Podemos finalmente abandonar a monotonia, as concentrações e estereotipias condicionadas por um espaço físico limitado e intensamente utilizado, para abrir a possibilidade de vasto conjunto de arquiteturas relacionais específicas das situações em causa. É agora possível acrescentar às relações tradicionais entre dois, contribuições colaborativas entre muitos saberes e experiências complementares, quando necessário. Passamos a ter instrumentos que promovem a literacia em saúde, mas que requerem novos papeis de mediação entre as pessoas e esses instrumentos e mais investimento em literacia digital. Torna-se, assim, também mais fácil acrescentar à telemedicina a telessaúde.

Telessaúde em contexto

Um dos grandes desafios aos sistemas de saúde da atualidade é a morbilidade múltipla que acompanha o processo de envelhecimento. São pessoas com situações de saúde diversas – doenças específicas, disfunções, dependências e fragilidades – de evolução persistente e prolongada, que requerem diferentes tipos de cuidados de saúde, novas formas de “prescrição social”, e uma forte exigência de continuidade e integração de cuidados.

A promoção da saúde e os cuidados de saúde centrados nas pessoas, cuja necessidade hoje interessa acentuar, entendem-se melhor através de dois tipos de percursos.

O primeiro é o percurso de vida e a capacidade de, em cada momento desse percurso, realizar o nosso potencial de saúde. Esta realização depende da herança que trazemos e acumulamos durante esse percurso, da capacitação adquirida para tomarmos decisões informadas sobre a nossa saúde na vida de todos-os-dias e da qualidade dos cuidados de saúde a que temos acesso.

O segundo percurso é aquele que temos que fazer, oportunamente, através dos serviços de que precisamos, de forma a conseguir os melhores resultados possíveis para a nossa saúde.

As implicações desta transformação são extraordinárias. Podemos finalmente abandonar a monotonia, as concentrações e estereotipias condicionadas por um espaço físico limitado e intensamente utilizado, para abrir a possibilidade de vasto conjunto de arquiteturas relacionais específicas das situações em causa. É agora possível acrescentar às relações tradicionais entre dois, contribuições colaborativas entre muitos saberes e experiências complementares, quando necessário.

A boa gestão destes percursos, da parte das pessoas, dos profissionais de saúde e dos serviços – sociais e de saúde – é hoje um desafio essencial para o nosso Serviço Nacional de Saúde.

Para tal este necessita seguramente mais recursos, mas precisa também de se transformar, superando a fragmentação de que historicamente padece.

E é precisamente neste contexto que a telessaúde adquire um papel fundamental no processo de transformação de que necessitamos.

A determinação que os pioneiros da telemedicina em Portugal têm revelado nas últimas décadas em conseguir progressos assinaláveis neste domínio, as novas experiências acumuladas no decurso dos últimos meses nos serviços de saúde do país e o “clima favorável à mudança” que precisamos de continuar a alimentar, permitem-nos esperar e oferece-nos a oportunidade de contribuir para que tenhamos boas notícias, num futuro próximo.